Ciência em alto mar: doutorando do Técnico cruza o Atlântico em expedição científica

Travessia de Ponta Delgada à Gronelândia permitiu a Afonso Gusmão investigar os impactos das alterações climáticas nos oceanos.

“Lembro-me de olhar para baixo e só ver as ondas gigantes enquanto o vento e a chuva gelada me batiam no rosto”. O cenário decorreu no Atlântico Norte, durante um ciclone que atingiu ventos de 35 nós e ondas de seis metros de altura. Suspenso num dos mastros do Statsraad Lehmkuhl, navio-escola norueguês, a ajudar a recolher uma vela, Afonso Gusmão viveu um dos momentos mais intensos da expedição que o levou de Ponta Delgada (Açores) até Nuuk, na Gronelândia.

“A minha paixão pela ciência, nomeadamente em temas relacionados com as alterações climáticas e sustentabilidade, vem de há muitos anos”, partilhou o estudante de doutoramento, quando questionado sobre a sua ambição. “Pensei que, para além de ser uma oportunidade única, esta expedição ia ao encontro de tudo o que eu acredito e me move como cientista”.

Doutorando do Programa Doutoral em Engenharia Mecânica do Instituto Superior Técnico, Afonso Gusmão participou na One Ocean Expedition, uma travessia integrada em iniciativas internacionais de investigação e sensibilização sobre os oceanos. Selecionado através do programa UTAustin Portugal  para uma das cinco vagas nacionais, juntou-se a 40 estudantes de doutoramento e mestrado de vários países no curso de verão organizado pela Universidade de Bergen (Noruega).

Durante três semanas em mar alto, os participantes dividiram-se em grupos de trabalho dedicados a diferentes temas, desde a geopolítica do Ártico à história das expedições científicas no Atlântico Norte. “O meu grupo foi responsável pela implantação de sensores-boia ao longo da viagem, permitindo o estudo das correntes oceânicas e da dinâmica dos oceanos e como estas estão a ser afetadas pelo aumento da temperatura média do Atlântico”, contou. A componente científica incluiu também recolhas para medir a concentração de microplásticos no fundo marinho, registos de perfis de temperatura e escutas de mamíferos marinhos através de sonares.

A bordo, a ciência e a navegação cruzaram-se diariamente. As aulas e apresentações ocorriam muitas vezes no convés, independente das condições meteorológicas. “Não é todos os dias que faço uma apresentação científica num ‘auditório em movimento’, ou que frequento uma aula no meio do oceano”, brincou. 

O estudante integrou ainda a blue watch, uma das equipas responsáveis pela manobra do veleiro. Entre as tarefas estavam a vigilância, a arrumação das velas, a manutenção do navio e o governo do leme. “Dormíamos em hammocks (redes suspensas), que funcionavam como pêndulos gravíticos, atenuando a ondulação durante o sono. O mais desafiante foi combater o cansaço físico que as tarefas requeriam e o frio do Ártico nos últimos dias”, descreveu.

Se os desafios foram intensos, também a convivência a bordo deixou marcas. “Durante três semanas fizemos parte de uma pequena sociedade que viveu no oceano”, relatou. “Criámos relações de amizade fortíssimas apesar de quase ninguém se conhecer. Toda a partilha, a disciplina, o apoio e a camaradagem nos momentos mais difíceis fizeram de nós uma pequena comunidade”.

A expedição trouxe igualmente aprendizagens para além da experiência prática. “Esta viagem abriu-me os horizontes sobre o impacto das alterações climáticas nos ecossistemas marinhos e na dinâmica dos oceanos. Fiquei a par de muita investigação e de políticas de mitigação, e percebi de forma muito clara a ligação entre ciência e sociedade”, afirmou. Além da travessia, Afonso continua a desenvolver investigação no Instituto de Engenharia Mecânica (IdMEC) e no Instituto de Bioengenharia e Biociências (iBB), incluindo o projeto Algae2Fish, dedicado à agricultura celular e à bioimpressão de filetes de robalo em 3D, para o qual desenvolveu uma impressora ‘única’.

Para Afonso Gusmão, a experiência foi “mais do que uma travessia”. No final da viagem, após percorrer 2.361 milhas náuticas, descreveu-acomo “uma epopeia”, reunindo “ciência, navegação e comunidade, num desafio que exigiu coragem, disciplina e união”.

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